quarta-feira, fevereiro 28, 2007

O nome do jogo

– Tua vez.
– Tu joga muito trancado! Vou abrir esse jogo.
– 'Ce que sabe.
– Vai! Tu demora demais...
– Xiu! Seqüestro-relâmpago. Pegaram Seu Tota. Tua vez.
– Tô vendo. Mas a loja dele nem tá essas coisas...
– É. Dama.
– Misera!
– Tá. Joga. Por que sempre saem cantando o pneu?
– Eu que sei? Viram muito filme. Sopro! Perdeu a dama.
– Opa, que isso aqui tá ficando perigoso!

sábado, fevereiro 24, 2007

It's up to you

Não era mais que 15:20, quando se perdeu entre "Despesas de escritório" e "Material de limpeza" no último relatório do mês. Se perdeu tão profundamente em seus pensamentos que já não via mais a mesa ou as pilhas de papéis. Viu, em milhares de telas, cenas da sua vida. Percebeu que alguma coisa tinha mudado nos últimos meses e não sabia o que era, mas o que quer que fosse tinha tirado sua poesia, suas gargalhadas, seu brilho. Não se sentia triste, nem feliz, nem satisfeito, nem miserável. Não sentia nada naquela rotina de casa-trabalho-casa. Ou seria trabalho-casa-trabalho? Estava trabalhando demais, mas... ok. A man's gotta do what a man's gotta do.

Despertou-se do sonho, com a mão da Morte em seu ombro.
– Hoje você vem comigo.
– Ok.

A Morte hesitou. Sentia um prazer levar almas entre gritos e choros. O desespero era a parte revigorante do seu trabalho. Mas também via com candura aqueles que ela levava que já estavam sofrendo demais, afinal de contas, a vida deve ser vivida. Considerava-se misericordiosa, o que não era o caso ali.

– Você não passa de hoje. Acabou. Sonhos, desejos, projetos, tudo.
– Uhum.

Irada, deu as costas. Sentiu-se insultada. Veio tirar a vida de alguém que já não a tinha. Deprimente.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Num canto onde o bom, o belo e o justo não tem valor

Lá estava eu, tranqüilamente lendo o Informativo 454 do STF sobre a Rcl 4.335/AC. O voto do relator, o Min. Gilmar Mendes, defendia que o julgado HC 82.959/SP onde decidira que a Lei 8.072/90, no §1º do artigo 2º, vedando a progressão de regime era inconstitucional e tinha efeito erga omnes. Esse habeas corpus já tinha aparecido nos Informativos desde o 315 – tratando da descaracterização do estupro e do atentado violento ao pudor sem lesão grave e sem morte como crimes que não deveriam ser enquadrados como hediondos. Antes de terminar a leitura, fui interrompido por uma muvuca bastante perturbadora no outro da rua, na frente da granja onde eu estava.

Acredito que o bicho devia estar ou possuído ou tomado pelos instintos mais animalescos. O fato é que ele corria insanamente atrás de uma infeliz que, obviamente, fazia de tudo para livrar-se. Enquanto um corria calado, a outra, correndo, gritava num desespero terrível e constrangedor. Até tive vontade de apartar os dois, mas como a coisa não era para o meu bico, fiquei inerte observando.

Deve ter demorado entre quinze minutos a meia hora a perseguição, quando finalmente ele consegui dominá-la, agarrando-lhe o pescoço. Completamente subjugada e encostada num muro com uma tela de arame, deixou ser pisada como se fora um tapete. Ficou imóvel enquanto ele preparava o caminho. A cópula em si demorou poucos segundos e logo depois o macho voltou a caminhar entre seus pares; mas ainda demorou pelo menos uns dez minutos para a gansa sair daquele canto.

Os homens têm se distanciado da natureza.
Não todos.

sábado, fevereiro 17, 2007

Tempo demais para dizer adeus

Quando morria alguém, tínhamos o costume de perguntar se fora de morte matada ou de morte morrida. Se fosse de morte matada, as próximas perguntas seriam sobre o autor e sobre o fatídico. Um mais curioso poderia ainda questionar se já pegaram o sujeito. Sendo de morte morrida a única pergunta que poderia se fazer era de que tinha sido, o que trazia as mais diversas respostas: de coração, de velho, de susto, de desgosto, de um baque, morria-se de todo jeito e sempre subitamente.

Hoje não. Tirando os acidentes e as mortes matadas, a ciência, quando não cura, fica infernizando-nos por meses a fio: será de câncer, será de coração, serão poucos meses. Enquanto os remédios contra dor nunca fazem efeito.

Descanse em paz e que Deus console os que ficaram.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Tá afim de ir para o Universo Paralelo?

– Nada disso é real, Jamil vivia em outra realidade.
– Isso não é privilégio dos loucos, cada um de nós vive uma diferente. É somente na colisão de realidades que nasce o conflito, não no contato. A forma como isso se dá define o nosso convívio, mas nem sempre o choque é fatal.
– O quê, doutor?
– Perdão, nada... elucubrações apenas.
– Agora que o senhor disse, tava achando muito louco mesmo.

Esboçou um sorriso simpático no rosto, próprio dos ignorantes. Eu não tinha tanta certeza qual era seu nível de ignorância. Astúcia e ignorância não se excluem, podia ser o caso. Jamil tinha dito que ela se assustava com qualquer coisa, um tiro na rua, gente correndo à noite. Mas quando ele recebeu a primeira carta, a hipótese de estar sendo ameaçado não a abalou. Por isso, ele suspeitou que tivesse sido fabricada por ela. As que vieram depois eram bem diferentes, e continuava suspeitando. Ou a esposa estava se aperfeiçoando na arte, ou tinha contratando alguém para o serviço. No dia que picharam seu muro, ele que temeu. Ligou para o batalhão e vieram pegá-lo com uma viatura. Frente ao corpo, não estava abalada, todavia, os braços cruzados e os ombros encolhidos mostravam que estava visivelmente tensa.

Na sua versão, ela tinha escrito um bilhete, para ele apressar a separação e sair dali. Queria trazer o namorado para casa. Com ele ali, não dava. Constrangimento, talvez. Jamil era fiel, e o que levou ao afastamento foi a falta de carinho, depois é que veio o "abuso da pessoa". O que não significava que desejaria sua morte. O problema se deu quando muitos souberam dessa carta. Isso deu oportunidade para qualquer inimigo manter a história e dar cabo dele. Afinal de contas, não falta bandido querendo matar PM.

Jamil era burro. Sua esposa – pela carta – também foi.

Eu preferiria os honorários de um divórcio – dinheiro rápido e tranqüilo – por mais tumultuada que fosse a audiência na vara de família. Entretanto, penal paga melhor, vendo por esse lado...

O trabalho agora é mudar um pouco a realidade. Fazendo com que ela não colida com a do delegado.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Nunca mais digo que odeio gente burra

Baixou a cabeça, como se tentasse concentrar-se, lembrando dos eventos que culminaram naquele momento, e possivelmente de outros que vêm sem licença à mente nessas ocasiões, formando o que chamara de "miserável existência", não conseguia chorar. Ao contrário, seus olhos estavam ardidamente secos pelo que pude ver. Olhou para mim e para o chão e apenas meneou a cabeça.

Jamil era uma boa alma, apesar de burro.

Ele me procurou por acaso. Estava na OAB de passagem só para deixar uma petição já que era o último dia do prazo, nesse período de recesso forense em que todos estão na praia, curtindo um kite com esse vento espetacular de 20 nó. Todos, menos eu. Ainda lembro como pacientemente o ouvi, desde sua decisão de levantar uma parede dividindo sua casa até sua odisséia forense, passando pelos bilhetes com ameaças àquele PM que jurava serem fabricados pela mulher que queria a casa para si somente. Após duas horas de conversa fiz tudo o que poderia ser feito a um possível futuro cliente num dia de sol com ventos de 20 nó: tentei dissuadi-lo a permanecer em casa – que ele não iria perder se saísse –, dei meu cartão e sublinhei os telefones, colocando atrás o nome e o telefone do meu sócio.

Honorários de advogado assustam, mas depois de sofrer uns meses nas mãos de defensores sobrecarregados de processos as pessoas acabam se rendendo a um procurador particular, pensei assim que recebi a chamada da esposa de Jamil, querendo que eu viesse à sua casa.

Jamil era burro, mas sua esposa não.

Entrando na sala, ela dizia que sempre reclamou que ele não trazia mais flores e cartões, vindo para casa apenas com feira e cansaço até que quem cansou foi ela e deixou-se levar por um "novo amor". Enquanto caminhávamos por um estreito corredor, deduzi que uma das paredes era a tal divisória, ouvindo-a reclamar que ele tinha espalhado pelos quatro cantos uma história de bilhetes para difamá-la. Somente quando chegamos no quarto, ela se calou.

Agora, parados ali, frente ao morto, percebi o quanto a burrice pode ser fatal.