terça-feira, janeiro 27, 2009

São Francisco de Assis

Quando se entra no ritmo das coisas, quando tudo torna-se familiar, parece que nada consegue tirar-nos do sério. Parece.

Hoje, como de costume, acordei antes do alarme, eram 5:40. Vi a tábua das marés e fui fazer o meu percurso. Na calçada à beira-mar, comecei a alongar. Quando me levantei, dei de cara com uma cadela, sentada, encarando-me com um palmo de língua para fora. Cumprimentei-a amistosamente. A essa hora do dia, a galera tem, em geral, pelo menos uns vinte anos a mais que eu. E, em geral, gostam de ser cumprimentados, vai ver que foi por isso que veio o cumprimento tão naturalmente.

Comecei a correr na areia fofa, naquele ritmo lento como se dá. O corpo ainda estava começando a embalar. O meu segredo é olhar sempre para frente, respirando, acenando para os conhecidos e logo vou vencendo a preguiça. Lá nos 700 metros, um senhor que caminhava no sentido contrário, vindo pela esquerda, puxou vigorosamente sua senhora pelo braço e passaram à minha direita, o que me fez perceber minha silenciosa companheira canina. Firme e forte, a danada trotava na minha velocidade. Fingi que não estava comigo. Na marca de 1000 metros há um quebra-mar. dali para frente a faixa de areia é batida, bem dura e plana, independente da maré. A cachorra continuou seguindo-me. Cheguei aos 2000 metros. Parei. Alonguei-me calmamente, na esperança de cansar minha acompanhante. Entretanto, ela pacientemente esperou que eu estivesse pronto para voltar e seguiu-me por mais 1000 metros. Nesse ponto, de volta ao quebra-mar, os últimos 1000 metros, é o trecho que volto nadando. Coloquei os óculos e comecei a entrar na água. Deu até pena, confesso. Ela andava para um lado e para o outro sem se aventurar a molhar mais do que as patas. O que podia ser feito? Aquele era meu percurso habitual, não estava sendo astuto de modo algum.

Com a maré ainda cheia, normalmente sou obrigado a afastar-me da costa ainda mais do que o costume por causa da arrebentação. Não chega a assustar, por essas bandas não há muito tubarão. Só, vez por outra, aparece um caçãozinho. Assim que passei dos corais e cheguei aonde as águas são mais profundas, uma sombra passou por baixo. Não dava para ter muito ideia de profundidade por ali. Continuei nadando. Pouco tempo depois passou novamente. Se era outra ou a mesma, não dava para perceber. A água estava turva e os óculos estavam um pouco embaçados. O diabo que iria parar ali para perguntar e esclarecer o mistério. Vários minutos depois, passou uma terceira vez. Daí fiquei mais tranquilo. Claro, se era para ter acontecido alguma coisa, tinha que ter sido lá atrás. E se fossem três ou duas criaturas, certamente, não seria cação, muito menos arraia. Quase no final do percurso, pouco menos de dois metros à minha direita, o que parecia uma rocha emergia, revelando o mistério: uma tartaruga marinha subia para respirar.

Não sei se era apenas uma ou um casal, mas tive a impressão que tive companhia naqueles 1000 metros pela água. Devia ser um conluio com a cadela que abandonei.

Acho que vou prestar mais cuidado com minhas orações. Quando pedir uma companheira, vou certificar-me de especificar que deve ser uma mulher da minha espécie.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

True Color

Depois de meses arrastando a reforma do escritório, finalmente chegamos à pintura. Rubens queria uma parede com textura, Santiago optava pelo que fosse mais barato e eu só desejava que aquilo tudo terminasse. Fechamos com o pintor. Ele sugeriu branco gelo para as paredes e branco para o teto, o que para mim era quase a mesma coisa, mas, "vá lá", ele era o profissional e devia entender melhor que eu. Noutro momento escolheríamos a cor da textura.

Até ali, nenhuma dificuldade. Apesar da minha visão resumir-se a 16 cores, nunca tinha enfrentado problemas para categorizar qualquer pigmentação entre preto, branco, cinza, azul, vermelho, amarelo, laranja, verde, roxo, marrom, rosa, vinho, bege, ouro, prata e bronze. E chegar numa loja com uma lista de material com os nomes das cores também nunca complicou meu dia.

Após latões de massa corrida e galões de tinta branca, chegou o momento de escolher a tal tinta da textura. Santiago estava numa cidade vizinha despachando com o juiz. Rubens confiava no gosto de Josias e estava bastante ocupado. Acabou sobrando para aquele que tinha mais pressa. Levei-o e deixei que escolhesse uma cor que combinasse com o ambiente. Eu pechinchei o preço, um que combinasse com meu bolso.

Tarde de sábado, quando quase todo o comércio está fechado, minha esposa liga, desesperada, convocando-me, urgentemente, ao escritório com os demais sócios, a tinta da textura tinha ficado horrível. Um escritório de três marmanjos não poderia ser pintado de pêssego, ou arreia ou palha, ou sei lá qual cor ela disse, que nada mais passava de algum tom entre amarelo e laranja, e que para mim era amarelo. Ela e a esposa de Santiago decidiram fiscalizar a obra justo no último dia de pintura.

Numa situação como aquela, no tom usado, com a voz da outra no fundo, não havia muitas opções: ou atendia ao chamado, ainda que demorasse um pouco para sequestrar os outros dois; ou sofreria uma retaliação desproporcional por algumas frias noites. Noventa minutos depois, estávamos no escritório, enquanto as fiscais esperavam no café, no térreo.

– Lucas, qual o problema?
– Vocês que me digam, Santiago.
– Por mim normal.
– Eu não falei que o pintor ia escolher direito?
– Rubens, as mulheres detestaram isso aí. Disseram que estava feminino.
– E isso é rosa? Pra mim é um amarelo puxado prum laranja.
– Santiago veste rosa e quem compra a roupa dele é Michele.
– Lucas, minha mulher não atende por "Fê-Fê". Prefiro os protestos por não acompanhá-la nas compras às reclamações de quando compro algo "feio", "cafona" ou "que não combina com nada que eu tenha".
– Não aguenta uma piada, rapaz? Então, o que fazemos? Pintamos tudo de branco?
– Daí tira o destaque, né? Se a gente queria uma textura tinha que ser com outra cor.
– Você queria.

Moral da história: sempre leve sua esposa para escolher as tintas do seu escritório. Porque não importa quanta saliva seja gasta ou promessas de comprar uma mobília máscula e arrojada, nada disso evitará uma cara bicuda e uma greve injusta quando ela ouvir que "não viu nada demais".

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Lamento

Antes de você ficar doente, do tipo de doença que, no primeiro dia, faz seu estômago rejeitar qualquer alimento e, a partir do segundo, desenvolva-se numa maldita virose com direito a febre e que ataque ao mesmo tempo ouvido, garganta e nariz. Antes de você sonhar com um quadro desses, esperando que, de alguma forma, você seja recompensado com o ganho secundário da paparicação, do mimo, dos cafunés, tudo isso cheio de cuidado e zelo. Muito antes de você pensar que isso pode acontecer com você, certifique-se de arrumar uma namorada, parceira, ou esposa. Todavia, não pode ser uma qualquer. Tenha certeza que esta possua um instinto materno bem desenvolvido. Caso contrário, você está ferrado, meu caro.