Confesso que fui apresentado a Woody Allen cedo demais e, por isso, sou meio traumatizado com seus filmes, principalmente se envolver um peito gigante destruindo a cidade. Mas como sou brasileiro e não desisto nunca, aceitei a recomendação de uma amiga: experimentar Woody Allen temperado com Scarlett Johansson. A pedida é levemente picante e com um aftertaste ligeiramente amargo e, como todos os filmes de Allen, é servida crua. Se você odeia spoiler e não assistiu Match Point (2005), convido-o a parar imediatamente a leitura, retirar-se da sala, ir numa locadora, pegar o filme, comprar pipocas e, depois de cumprir essa maratona, voltar daqui a 124 minutos.
Citada quatorze vezes e aparecendo em dezoito cenas, a grande personagem dessa história é a sorte. Sobre ela o autor discursa e usa os demais personagens humanos meramente como exemplos vivos. A hipótese levantada pelo protagonista é bem clara: sorte é o maior valor que se pode aspirar, não a bondade e, com sua licença, incluo a justiça, a nobreza e qualquer outro sublime valor moral. Com isso em mente, o protagonista é apresentado como um farsante inteligente e com muita sorte. Poderia até apostar que se eu estivesse em Londres, em 2005, na saída de alguma sala de cinema, teria escutado, com todo sotaque britânico, o tradicional "that (bloody) lucky bastard" em nove de cada dez referências feitas ao personagem de Jonathan Rhys Meyers, Chris.
Na minha humilde visão, desde o começo, ele queria dar o golpe do baú. Aculturou-se como pôde, trabalhou no local correto, fez amizades com as pessoas certas etc, sempre com a sorte fazendo-se muito presente em cada uma dessas ações e escolhas. A sorte fê-lo arrumar o aluno certo, que tinha uma irmã solteira e carente. Ele teve sagacidade no modo (ou sorte na escolha do modo?) de como tratar a família para cativá-la, porém, nem mesmo dado uma série de mancadas envolvendo-se com Nola, a sorte o abandonou, ao contrário, nunca era pego em nenhum de seus deslizes.
Nola, por outro lado, era a tipificação da garota sem sorte. Uma mulher extraordinariamente linda que não consegue, em absoluto, nenhum papel como atriz, nem mesmo um onde só a beleza bastaria?! É até surreal apresentar uma situação como aquela, mas Woody Allen é surreal, só por isso deixo passar. Particularmente, prefiro não considerar como falta de sorte a gravidez e o fato de se envolver com um cara como o Chris, porque acho que é bom diferenciar burrice de falta de sorte. Todavia, acho que talvez Allen pense diferente, fazendo coro com a multidão que diz nessas horas: "uma garota tão boa, mas não tem sorte com os homens". Entretanto, longe estou de acusá-la de plantar a própria morte. Numa relação onde não existia agressividade, quem poderia imaginar que dela surgisse um homicídio por um motivo tão vil? Ainda mais quando não havia chantagem concreta — eram apenas brigas e chiliques — e quando a amante era incrivelmente submissa. Impossível não sentir muita pena da personagem, ainda que se conte em desfavor a única traição enquanto noiva e a completa cegueira ao ser amante. Foi azarada até a morte.
Então, nos minutos finais do filme, você vê o arremesso do anel, tal como uma bola de tênis, quicando na proteção e caindo no lado de quem o arremessou, repousando na mureta. Você arregala os olhos, aponta o indicador na tela e pensa, ou grita, conforme o entusiasmo da hora: "Arrá! Finalmente a sorte abandonou o canalha!". E imediatamente tem uma pequena crise moral, visto que ao punir Chris, a tonta personagem de Emily Mortimer, Chloe, e seu nascituro também sofreriam. Por outro lado, cerrarão os olhos da justiça para Nola e seu feto? Antes que você consiga resolver esse seu drama moral, a sorte se mostra, naquele evento de aparente derrota, ainda mais fiel to that bloody lucky bastard!
O filme é cruel. Tenta ensinar que a sorte pode ser absurdamente injusta e plena. Sinceramente, prefiro uma outra visão sobre a sorte. Prefiro pensar que quanto mais estudo/trabalho/treino/(insira aqui qualquer outro verbo que dê ideia de empenho pessoal), mais sorte tenho. Ao menos eu fico um pouco iludido com o pensamento que alguma coisa ao meu redor depende de mim para acontecer.
Publiquei esse texto no Mosaicum.org, um blog colaborativo sobre tudo, menos informática.