domingo, abril 30, 2006

Conflitos Existenciais num Estado Laico

Tudo que Ramón Sampedro queria naqueles 28 anos de vida preso numa cama era morrer, não havia como viver dignamente, sob a sua perspectiva do que era a vida. Tinha coragem e vontade de ter uma "morte digna", mas o corpo de um tetraplégico só pode ser movido pela vontade alheia. Mar Adentro questiona essa diferença de pesos e medidas na disponibilidade da vida como bem privado que faz com que alguém que não possa se suicidar por sua própria mão seja condenada a viver, enquanto outro que consiga controlar seus membros pode tentar se matar tantas vezes quanto queira até obter êxito sem ser punido nenhuma vez. Assim, o filme defende que a criminalização do auxílio ao suicídio é arraigado em interesses religiosos, coisa que contraria a defesa de um Estado de Direito Laico, e quem quiser "equilibrar" essa balança, aqui no Brasil, incorre na pena prevista no artigo 122 do Código Penal.

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio
Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
Parágrafo único - A pena é duplicada:
Aumento de pena
I - se o crime é praticado por motivo egoístico;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Direito Penal Brasileiro

Conforme ensina-nos Damásio de Jesus, o suicídio ou a tentativa no aspecto formal é um indiferente penal. E por questões de política criminal, puni-lo "constituiria um acoroçoamento à repetição do tresloucado ato". Materialmente pode ser considerado ato ilícito, visto que impedir esse ato descriminaliza a conduta do "constrangimento ilegal":
Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
II - a coação exercida para impedir suicídio.

Se é assim, o constrangimento é legal e a conduta suicida é ilegítima.

Direito Civil Brasileiro

Na lição de César Fiuza, o direito à vida pertence ao grupo dos direitos à integridade pessoal, ao lado do direito ao próprio corpo e do direito ao cadáver. Estes, por sua vez, pertencem aos direitos da personalidade, os quais são direitos tanto da esfera pública quanto privada. São normas de direito privado, protegendo o indivíduo contra o poderio dos mais fortes; assim como do direito, socorrendo-o contra as ações do Estado. Na esfera privada, são denomidados "direitos da personalidade", na pública, "direitos humanos" e "direitos fundamentais".

Os direitos da personalidade são:
– genéricos: são concedidos a todos;
– extrapatrimoniais: não têm natureza econômico–patrimonial;
– absolutos: o titular pode exigir que toda coletividade respeite seu direito;
– inalienáveis ou indisponíveis: não podem ser transferidos a terceiros – com ressalva aos direitos autorais, ao direito à imagem, ao corpo, aos órgãos, etc., por meio de contratos de concessão, licença ou doação;
– imprescritíveis: podem ser exercidos a qualquer tempo;
– intransmissíveis: não se transferem hereditariamente;
– necessários: todo ser humano necessariamente os detém por força de lei;
– essenciais: são inerentes aos ser humano;
– preeminentes: sobrepujam–se a todos os direitos subjetivos.

A grande questão é: podemos dispor de nossa própria vida? É o bem da vida disponível de forma ilimitada?

Religioso ou Laico

Citando ainda César Fiuza, "o destaque e o desenvolvimento das teorias que visavam proteger o ser humano se devem, especialmente, ao cristianismo (dignidade do homem), ao jusnaturalismo (direitos inatos) e ao iluminismo (valorização do indivíduo perante o Estado)". Como se vê, a "vida digna" tem sua raiz no cristianismo, poder-se-ia concluir que as normas que regem os direitos fundamentais estão eivadas de religião. Contudo, não é uma perspectiva exclusivamente cristã e mesmo o Estado moderno sendo um Estado laico, suas normas devem conter uma essência moral e ética. Como todos os direitos fundamentais, a vida e a dignidade podem ser relativizados. Em tempos de guerra, um crime pode condená-lo à morte; e a dignidade é costumeiramente relativizada dentro e fora dos tribunais.

A idéia que se tinha no Estado clássico que o proprietário privado da terra poderia destrui-la é estranha ao ordenamento jurídico hodierno que imbui o exercício do direito à propriedade do cumprimento de sua função social. Se caso a vida seja vista como propriedade privada do indivíduo, é perfeitamente admissível que deva se exigir o cumprimento de sua função social.

Um dos poucos direitos fundamentais absolutos é o direito à não tortura (Constituição Federal, art. 5º, III), ainda que a vida seja relativizada, em hipótese alguma o Direito Brasileiro admite que haja tortura. Assim, surge uma outra questão: o que leva uma pessoa ao suicídio é uma existência sob tortura? Estaria aquele que auxilia o suicídio poupando uma vítima de tortura?
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

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