terça-feira, dezembro 30, 2008

Prática

Participou de todas as confraternizações e festas: a do trabalho, a da turma da faculdade, a dos amigos do colégio, a da família do pai, a da família da mãe e uma outra que nem sabia porque tinha sido convidada. A seqüência de eventos era mais ou menos a mesma: beijos e abraços em todos a medida que vinham chegando, conversas, bebidas e comidas, mais conversas e mais beijos e abraços em todos a medida que iam se despedindo.

Pensou firmemente que o que precisava era de alguém que não precisava ser muito bonito ou sarado, mas que a fizesse brilhar os olhos, que lhe desse uma vontade incontrolável de sorrir ao vê-lo e que a desejasse extasiada a cada bobagem que fizesse. Queria muito isso para si.

No último final de semana, foi a um sítio de uma de suas tias para receber uma outra tia, muito querida, que já não vinha por aquelas bandas desde sua colação. Conheceria, finalmente, Pedro e Júlia, seus primos mais novos. Além das tias, pai e mãe, muito barulho, gritaria e correria provavelmente iriam impedi-la de continuar sua leitura, por mais interessante que seu livro estivesse, mesmo assim o levou para salvá-la de qualquer eventualidade.

Em algum lugar, e ao mesmo tempo em todos os lugares da casa, enquanto Pedro e Gabriel corriam na velocidade que eles acreditavam ser a da luz, podia também se ouvir:
– Pitchiuuuuuuuuuuu!
– Bombaaaaaaaa!
– Matei!
– Eu não morri! Estou usando roupa de ferro!
– Então eu também estou.

Em duas redes não muito distantes:
– O que é isso que está na mão deles?
– Walk-talk.
– E isso agüenta esse rojão?
– Tia Liz vai descobrir depois que ela comprar baterias novas.

Júlia, que não conseguia acompanhar a velocidade da luz dos primos, somados aos três anos que a separavam deles, cansou-se rapidamente daquela monótona perseguição. Dirigiu-se a uma rede que já estava ocupada por alguém com pelo menos trinta anos de diferença. Agarrou-se à rede e tentou vigorosamente lançar uma perna por cima da rede, em vão, mas não por muito tempo, já que foi socorrida pela ocupante.

– Cansou, Ju?
– Sim – disse, balançando a cabeça.
– Quer fazer alguma coisa agora?

A pequena foi curvando-se na rede sobre o corpo da maior, abraçando seu pescoço até onde seus curtos braços alcançavam. Colocou o ouvido sobre o seio do seu forro-humano-de-rede e ficou ali, paradinha. O "não", veio como um murmúrio.

– Quer dormir comigo, Ju?

Júlia acenou positivamente a cabeça. Como se toda sua energia tivesse abandonando o corpo, ou como se já estivesse testando a maciez daquele colchão que descobrira na prima mais velha. O colchão, por sua vez, entendeu e silenciou-se, no exato momento que começou a reformular aquilo que firmemente achava que precisava.

sábado, dezembro 20, 2008

Costume

A sensação era desagradável. O eminente fim de ano chegando com festas, presentes e comemorações não combinavam com a consciência de que o tempo lhe escapava das mãos. A despeito da evolução alcançada profissionalmente, de tudo que suportara na reabilitação da saúde, de como tinha chegado até ali. Os alvos não alcançados tinham uma voz muito mais alta na sua auto-crítica.

Tal como papai-noel, já acostumara-se a vestir a fantasia do espírito natalino. Decorara os votos, conversas e piadas de fim de ano. Acendia o brilho nos olhos e dispunha o melhor sorriso nas festividades. Já lhe era tão natural aquele esforço, que só lembrava do peso do costume quando chegava em casa, nem por isso correria da festa. Chegar em casa também significava estar só e isso também tinha sua dose de cansaço.

Fingir-se-ia de bem com a vida. Quem sabe não acreditaria na sua própria encenação?

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Cãibra

O azul anil do céu lá fora e as centenas de pássaros chilreando nos galhos do jambeiro não combinavam com o branco azedo dos lenços de papel que transbordavam pelas bordas do cesto.

Ainda reverberavam nos ouvidos: "estás magra". O que, por intuito sincero do amigo, seria um elogio, era, na verdade, a constatação da sua incapacidade de digerir aquele instante, os pratos da mãe, o rompimento da relação, os consolos idiotas... Quem sabe se, por não comer, desapareceria do mundo?

Descendo uma onda, há pouco mais de 10km daquela cama, não havia nenhum prazer no velô. Cut-back, 360º, ARS... Tentava destruir a onda com a prancha. Não conseguia – e nem queria – curtir o momento. Inconscientemente queria levar o corpo à exaustão, talvez assim pararia de pensar nela.

A cena ainda estava viva na mente, reproduzindo continuamente. Ela tinha sido grossa com ele. Ele tinha se chateado, mas queria por as coisas em pratos limpos. "Desculpe, mas eu sou assim. Esse tipo de coisa a gente não controla. São hormônios e não há nada que eu possa fazer". O tom da voz, o olhar vil, os braços cruzados... não saberia dizer o que o ofendera mais. Queria paz. Queria voltar a sentir prazer no borborinho da espuma das ondas.

O orgulho, travestido de amor-próprio, impediu a ambos que ligassem.