quinta-feira, janeiro 31, 2008

"Imune"

Sempre considerou-se bom com as palavras. Sabia exatamente o que dizer. Era um tato especial que lhe dizia qual o tom que deveria usar, quais as palavras certas, o olhar adequado, a postura mais conveniente. Se não fosse um embate pessoal, mas escrito, bastava observar por alguns minutos aquele que leria e já saberia, igualmente, o que deveria por no papel. Confiava no seu talento. Foi essa habilidade que o aprovou em todos os exames na vida acadêmica, desde a escola até a pós-graduação. E que, semelhantemente, levou-o a diversos círculos de amizades e envolvimentos amorosos. Com muito pouco se frustara na vida, todavia, tivera sua cota de decepções, porque nem tudo é resolvido com palavras.

Foi numa madrugada dessas, de sexta para sábado, que ela apareceu. Ela tinha uma aura que ele ainda não tinha visto. Uma que era imune a seu dom. Ainda assim, a primeira conversa que tiveram foi muito longe de ser um fracasso.

Curtiram-se.
Desejaram-se.
Amaram-se.
Brigaram-se.
Reconciliaram-se.
Fizeram o caminho de todo casal.

Certo dia ele tentou confessar que "tentava medir as palavras que deveria dizer a ela como se andando em casca de ovos" (porque tinha um talento e que ele não estava mais funcionando já há algum tempo), porém, a confissão foi tão desastrosa que não passou da primeira etapa. Nunca mais quis comentar que possuía aquele talento.

Ela também tinha um talento (ou ele pelo menos suspeitava que sim), e também não estava funcionando tão bem (desde que o conheceu, por certo). Contudo, diferente do dele, o dela ainda funcionava quanto aos outros. O dele estava completamente desajustado. Ele admirava sua percepção. Em certos momentos ela o interpretava de forma completamente equivocada. Em outros, ela conseguia penetrar-lhe tão fundo na alma, que ele tinha convicção de que ninguém nunca o conheceu tão bem.

Todavia, o Universo tem estranhos poderes. Apesar da força gravitacional entre aqueles dois corpos, uma força bizarra separou-os por muitas décadas a fio – tempo suficiente para os dois envolverem-se com várias outras pessoas. Entretanto, talvez por pura brincadeira, o Universo fez novamente coincidir suas trajetórias. Por um instante encontraram-se – tempo suficiente para os dois...

terça-feira, janeiro 22, 2008

Quão tolo se pode ser?

Larissa tem gostado muito da Yoga. Ontem, no telefone, ela me chamou para que tomássemos um café depois do expediente e pediu que hoje eu parasse, no meio do trabalho, por um momento, tudo o que eu estivesse fazendo, apagasse os pensamentos de prazos, preocupações e etc e toda aquela conversa de yogi, para que eu ouvisse, principalmente o coração. Achei até meio bobo o pedido, mas como não há quase nada que ela me peça e eu não faça, resolvi atender seu pedido.

Então, entre um gole de capuccino e uma mordida no pão de queijo, relatei: O som mais expressivo é o cooler do meu computador, mas não me incomoda nem um pouco; depois vem o som do ar-condicionado – deve estar quebrado porque coloco no máximo e ainda sim não gela mais o ambiente como antes; quase não dá para escutar o som dum pequeno ventilador apontado para mim – sou calorento e o ar não está dando vencimento – essa combinação, contudo, dá para produzir uma brisa fresca. Tirando esses, que são constantes, outros são intermitentes. Os carros, ônibus e motos que passam lá embaixo na rua; o teclado quando estou a digitar; a tecla do mouse; o rangido da cadeira que, sempre que ouço, lembro que preciso comprar um spray lubrificante; os meus dedos coçando o couro cabeludo sempre que paro para pensar "no próximo passo". Não consegui ouvir meu coração, nem minha respiração, nem meu aparelho digestivo. Isso foi tudo que pude ouvir.

Ela olhou-me com uma tristeza de quem ouviu a resposta mais errada que se poderia dar, ao que me disse: Jonas, meu querido, pedi para que você ouvisse o seu coração em relação ao mundo que o cerca e não o barulho das coisas que ao redor. Porque você não pára e escuta o seu coração?

Pus um sorriso no rosto, arregalei os olhos, fazendo uma cara de bobo inocente. E, colocando a mão no peito da maneira mais teatral, ridícula e palhaça, falei: Hum, preciso dumas aulinhas de Código Morse.

A verdade que eu não a disse, porque preferi que vê-la virando os olhos aos céus desapontada com minha falta de seriedade, é que já nem lembro quando foi que ouvi meu coração e tenho até receio de saber o que ele quer me dizer.

sábado, janeiro 12, 2008

Só estou pedindo-lhe um pouco de ordem e isso jamais fez mal a outrem, nem doeu.

A verdade é uma só: todos temos algo coisa que não bate exatamente como deveria.
Há os que incomodam. O Geilson com aquele tic disritmado no olho me deixa louco.
Ao menos ele eu posso não olhar. Pior é Clarice. Não consigo evitar seus beijos.
Ah não! Clotilde ganha! Porque, além de me abraçar todo dia, usa Leite de Rosas.
Contato humano. Argh! Aquele suor, aquele cheiro. Não é como meu gato, Roberval.
Pêlo sempre limpo, não precisa de ninguém pra suprir as carências. Ele se basta.
Pode não parecer, mas respeito as da secretaria as suas insanidades, TOCs e etc.
Tanto respeito que ainda trabalho lá. Quarta-feira passada fiz mil dias de casa.
Vejam o quanto sofro como cordeiro mudo: contei esse fato histórico pro Geilson.
Ao que me disse: "Tu é gay? E ainda não comeu a Clotilde?". Parabenizou-me? Não.
Agüento isso calado. Não vou explicar novamente que não curto um relacionamento.
Eu gosto das coisas bem ajustas e num relacionamento as coisas saem do controle.
Isso sem falar daquela da troca de fluidos, dos choros, das chantagens. Um saco.
Não que eu não acredite que eu não seja uma pessoa perfeitamente normal, eu sou.
Mas pensei que poderia ser uma pessoa mais comum e até pensei que poderia mudar.
Decidi que adotar uma criança, com meus 45 anos de vida, seria algo bom a fazer.
Poderia ensinar-lhe muito do que aprendi na vida e tiraria outra criança da rua.
Fui guardião por 50 dias, quando percebi que criá-la me levaria à loucura certa.
Disseram-me que seria melhor adotar uma criança com, no máximo, 3 anos de idade.
Quanto cocô uma criança pode fazer? Aquilo é uma fábrica sem pausas para almoço.
Devolvi. Eu tiraria gato da rua. Roberval é pacífico. Conviveria bem com um SRD.
É tudo uma questão de gosto: ser pai, ter mulher e família são gosto dos outros.
Sou feliz como sou e como estou. Não preciso ser igual a todos, ninguém é igual.
Preferi aceitar-me: o chefe sem moral e alvo predileto dos funcionários da SDCD.

sábado, janeiro 05, 2008

Quando bastante não é o bastante

"Desculpe, querida, infelizmente não sei falar coisas bonitas e declarações de amor. Eu gosto muito, muito mesmo." – esse é o tipo de diálogo que Cícero fazia na mente e dali nunca saía. Primeiro, porque não era agradável de ser dito ou ouvido. Segundo, porque não era sincero o suficiente.

A verdade é que ainda ressoavam as palavras de Rafaela em seus ouvidos. Dissera-lhe que ele não sabia o que era o amor, nem nunca a amara. E por causa daquele não-amor, ambos sofreram com a separação e Cícero odiou todo seu universo e a si próprio por não-amá-la. Quando achou que o tempo – que cura todas as feridas e apaga todo o sofrimento – já tinha feito seu trabalho, decidiu que era hora de tocar a vida, daquele ponto em diante.

Naquela confluência astral, conheceu Mônica. Gostou bastante dela. Bastante para noivar. Bastante para casar. Porém, nem mesmo na cerimônia de casamento ousara dizer que a amava. Limitara-se ao "sim" em meio a todos os votos de amor que sacerdote recitou. Como poderia dizer? O que sentia por Mônica era bom, mas aquilo que sentira por Rafaela era muito mais forte e intenso, todavia, não era amor.

Ontem, Soninha e Henrique correram desde de a sala, passando pelo corredor, atravessando a porta do quarto de casal e voando na barriga do pai, interrompendo o noticiário local. Cícero agarrou os dois, um em cada braço, e entre cheiros, beijos e cócegas, disse que os amava. E pelo canto do olho percebeu o ciúme e a tristeza de Mônica com aquela cena – "um deslize", pensou ele.

Depois que levou as crianças para cama, deitou. Mônica já havia dormindo ou fingia. Deu-lhe um beijo de leve no ombro e virou-se para o outro lado. Enquanto o sono não vinha, o pensamento vagava. Quando foi o deslize? Naquela noite ou há quatro anos atrás?