In Natura
O brilho dos seus olhos fazia o dia raiar. Divertia-se moldando bichos de nuvens, guardando o barulho do mar nas conchas e fazendo nascer plantas nos lugares mais inusitados. Era especialista na arte de fazer arte, de fazer rodamoinho no pé dum pé de planta, de ensinar folha a dançar no ar, de fingir ser o amigo imaginário duma criança brincando sozinha. Tinha o riso frouxo. Tudo aquilo era muito gostoso.
Certo dia, num desses inspirados, controlando-se para não rir, colocara um sonho insano no rapaz que acabara de almoçar ao pé duma árvore. Ao virar-se, percebeu que ela estava ali, vendo a cena (ou pensou que ela tinha visto). Todavia ela fora vista: sorriso doce, voz suave, caminhar leve e um cheiro, uma fragrância, que nunca tinha sentido antes. Ficou cativado.
Numa noite qualquer, seguiu-a até sua casa. Descobriu seu quarto e fez uma rosa brotar na frente da janela. Esperou amanhecer e para ver sua reação. Não poderia ter sido melhor. Danou-se. Queria ser gente. Queria ser homem e para isso fez nascer braços e pernas, cabeça e tronco, mãos e pés. Fez sangue correr pelas veias e artérias. Seu sangue fervia.
Fervia o sangue. Fervia a alma. Nunca o sol estivera tão quente naquele ano que não teve inverno. E de tanto ferver. Evaporou-se. Nenhuma criatura aprende a ser gente de uma hora para outra. Nem gente aprende! Enquanto evaporado, sentiu os primeiros ventos frios. Resistiu e tentou lutar, porém o vento era tão implacável que o fez condensar.
Já há muito não chovia tanto quanto as águas daquela noite. E ele caiu do céu feito pedra, e como pedra ficou por incontáveis dias chuvosos. Cobriu-se de líquen, vestiu-se musgo, não achava o lodo bonito, mas acabou usando um pouco. Ele choveu tudo o que pôde e quando não pôde, pintou o firmamento de cinza e assim deixou.
Numa manhã qualquer que começara como todas as anteriores, sentiu uma cutucada no dorso. Um passarinho desavisado foi limpar o bico num cantinho esquecido pela relva que o envolvera. Fez lembrar de dias passados, fazendo-o suspirar de saudade. O suspiro abriu um pouco o céu, o suficiente para que o sol lhe mandasse os cumprimentos e chamasse-o para uma visita. Ele disse que confessava-se grato pela lembrança, mas estava "bem de pedra" (daquele jeito) e "quem sabe outro dia". Coincidentemente, ou não, o passarinho bicou-lhe as costas. Seguidas vezes. Ele não sentia as patas que algum inseto ágil em fuga, só poderia ser provocação daquela ave que queria fazê-lo levantar. Levantou-se. O passarinho saudou-o. O sol secou-lhe corpo com seus raios e refletiu seu brilho no olho negro do passarinho. Lembrou-se de si novamente, entretanto não suspirou. Tomou coragem, fez surgir asas enormes e decidiu conversar com o sol.
Passou o dia voando e proseando com o sol, um dia com tantas horas que dariam um ano, percebeu que, naquele tempo todo, não tinha visto o verde. Tudo ao redor era tão seco quanto a secura que o dominara. Agradeceu o convite ao sol, deu-lhe boa tarde e mergulhou na primeira nuvem que viu. Largou as asas e caiu no mar.
Nadou por todos os mares, fez ondas de todos os tamanhos, conheceu algumas sereias... Nem os mares quentes o fez sentir como antes. Até repetiu, por vezes sem número, várias de suas especialidades, porém aquilo perdera o sabor. Não encontrou mais lugar para si.
Preferiu viver a vagar.