sexta-feira, julho 14, 2006

O direito de ter uma casa

"O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar."

Lord Chatham no Parlamento britânico


Zé Maria, caminhoneiro, casado, pai de três filhos, mas que só fica em casa com a mulher e os filhos de 23 de dezembro à 02 de janeiro. No restante do ano, passa pelo Brasil, dormindo na boléia do caminhão estacionado num posto de gasolina. Seria ele diferente do frentista do mesmo posto que, por favor, dorme num quartinho atrás da borracharia, 10 metros de onde o caminhão estacionara? Conforme nossa Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Não é necessário muito esforço mental para perceber a relação entre os incisos. Os incisos X e XI, juntamente com o XII (que trata do sigilo dos dados e das comunicações), formam um tripé de sustentação do direito à não invasão da esfera de privacidade e intimidade do indivíduo. Retirar a proteção de qualquer desses é expor a um tratamento diferenciado os legalmente iguais. Vale salientar que, ainda sem ressalva no inciso X, entende-se não serem absolutos os direitos. Se assim fossem, seriam escudos protetores da atividade ilícita travestida de intimidade do indivíduo delinqüente.

Convém observar o termo "casa". Não pode ser entendido de maneira simplória e corriqueira. Se o requisito de "casa" fosse ser um bem imóvel, todas as pessoas que, por ironia do destino e por mero requinte do intérprete da lei, seriam desprestigiadas por ter como casa um local pouco convencional. Por isso, com muito acerto a jurisprudência defende:

... o termo domicílio tem amplitude maior do que no direito privado ou no senso comum, não sendo somente a residência, ou ainda, a habitação com intenção definitiva de estabelecimento. Considera-se, pois, domicílio, todo local, delimitado e separado, que alguém ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente"
Serviço de Jurisprudência do STF, Ementário STJ n° 1804-11

Assim, ainda que o Estado queira vasculhar cada centímetro daquela região, atrás da cortina que divide o acento do motorista e a rede, Zé Maria pode dormir sossegado até, no mínimo, amanhã de manhã.

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